domingo, 14 de outubro de 2018

Alimentando os lobos

Saudações lupinas, pacientes leitores!


Já passaram uns meses desde os meus últimos rabiscos neste espaço cada vez menos activo, mas apenas pouco mais de uma semana desde a minha mais recente visita à Ibéria.

Como já vem sendo hábito, os meus planos de visitar cem pessoas e fazer mil coisas revelaram-se demasiado ambiciosos. Para compensar, fomos dar de comer aos lobos. Literalmente.


Há uns 3 anos participei financeiramente numa campanha lançada pelo Grupo Lobo com o intuito de angariar fundos para assegurar a propriedade onde se encontra o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico, na zona de Mafra. Como recompensa, deveria ter lá ido passar um fim-de-semana para conhecer o trabalho que lá se desenvolve, mas devido à minha geral falta de disponibilidade por viver no estrangeiro, bem como às mudanças que desde então ocorreram, acabei por nunca o fazer.

Entretanto recebi um lembrete por parte das pessoas envolvidas no Grupo Lobo, e ficou combinado que lá iríamos passar um par de dias e experimentar um pouco do dia-a-dia dos voluntários que ajudam nas diversas tarefas de manutenção do centro e seus inquilinos.

Não tenho fotos dos lobos para apresentar. Não tanto por falta de oportunidade (embora permissão por escrito, assinada em triplicado pelo lobo em questão, seja necessária), mas principalmente porque não me pareceu correcto ir lá como se de um jardim zoológico se tratasse e importunar os lobos com a minha incapacidade de captar imagens dignas. A prioridade ali é o bem-estar dos lobos e a sensibilização para a presente ameaça à sua sobrevivência, não o entretenimento dos humanos que por ali passam. De qualquer forma estão disponíveis algumas imagens no site (aqui os que actualmente lá habitam, que podem ser "adoptados").

Não sabia o que esperar de tal estadia, excepto que seria certamente inspirador estar perante animais que trazem consigo uma certa mística e cuja imagem me remete para tempos idos em que avós e netas com capuchinhos vermelhos eram perseguidas pelos bosques.

Ainda existem algumas centenas de lobos Ibéricos em liberdade, números em muito inferiores aos do passado, mas ainda assim melhores do que os do mais ameaçado lince Ibérico. Portanto, não sendo o "último reduto" dos lobos em Portugal, é um abrigo para alguns deles que por diversas razões não podem ser postos em liberdade.

Neste momento vivem naquele vale 13 lobos, 2 ou 3 em cada cercado (ocupam cerca de 4.5 hectares dos 17 hectares do centro). Embora tenha ficado pouco tempo, acabei por memorizar os nomes de todos eles, e o impacto desta estadia foi tudo menos ténue.

Conseguimos vislumbrar quase todos os lobos, mesmo sendo alguns deles bastante tímidos, principalmente quando há estranhos por perto. O facto de termos ajudado aquando da alimentação contribuiu para isso, como é óbvio, mas não deixa de me trazer um sorriso aos lábios. São criaturas fascinantes e sempre presentes na mitologia Ibérica, e observá-los num estado relativamente selvagem tem o seu quê de mágico.

Embora não seja nada selvagem ter humanos a alimentá-los, os horários e o tipo e quantidade de "ração" são variáveis, de modo a minimizar o hábito (basicamente não queremos que eles se tornem cães). E no que consistia esta nobre tarefa? Em lançar ovelhas indefesas para o interior do covil dos malvados lobos? Bem, infelizmente (ou felizmente para as ovelhas) não era bem isso. 

Tínhamos uma espécie de talho improvisado, onde preparávamos todo o tipo de carne (fora de prazo para os humanos, mas os lobos não se importavam) de acordo com o que cada lobo deveria comer naquele dia. Não é, portanto, uma tarefa agradável ou limpa, mas a parte divertida vem logo a seguir.

Com um balde para cada lobo percorríamos o vale e lançávamos os pedaços de carne por cima das cercas. Então granadas de carne explodiam ao atingir o chão, ou frangos inteiros depenados pareciam voar para o seu juízo final. Por vezes era necessário distrair um dos lobos com alguma carne de tamanho considerável antes de alimentar o(a) companheiro(a), para evitar que o mais velho/fraco/lento se alimentasse de forma insuficiente devido a um roubo.

Depois era a expectativa. Afastávamo-nos para uma zona mais recôndita e esperávamos observar os lobos que esquecessem um pouco a timidez e decidissem comer. Todo aquele trabalho de talhante valia a pena nesse momento.


Bem sei que romantizo um pouco a coisa. Os lobos selvagens, a natureza, a vida em harmonia com as outras espécies, incluindo a nossa. Isto simplesmente não acontece. Tanto no passado como no presente muitos dos espécimes em liberdade acabam por morrer por envenenamento, apanhados em armadilhas ou atingidos por um tiro. Havendo mais lobos, mais casos destes ocorrem também. Só se o seu território estiver de alguma forma vedado ao nosso contacto é que isto não acontece.

Iniciativas de recuperação de espécies como esta levada a cabo pelo Grupo Lobo são de louvar, embora ache que, com o rumo que os problemas ambientais levam, serão cada vez mais difíceis de sustentar. Estas bestas da espécie homo sapiens sapiens destroem cada vez mais o habitat não só das outras espécies como também o seu. Depois não sei quem irá criar o Centro de Recuperação do Humano Ibérico.


Considerações apocalípticas à parte, não posso deixar de recomendar que visitem o centro, que se inscrevam como voluntários se pretenderem pôr as mãos na massa, ou que "adoptem" um lobo. E não se esqueçam de ter sempre na mala do carro um par de frangos ou, se tiverem um monovolume ou um SUV, uma ovelha, para o caso de encontrarem um lobo faminto pelo caminho.


Até breve!

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