sexta-feira, 9 de junho de 2023

Pai

Algumas das nossas ondas sonoras favoritas entram-me agora pelos ouvidos. "Time", com "The Great Gig in the Sky" logo de seguida.

Quão apropriado.

Do mesmo disco dos Pink Floyd que pus a tocar naquele quarto de hospital onde já pouco ou nada estavas a ver, ouvir, sentir. O mesmo disco que me fará sempre lembrar de ti, e que agora terá sempre a carga emocional que inevitavelmente acumulou nessa última hora que passei contigo.

Ainda me parece surreal que tenhas partido. E nada me poderia ter preparado para a brutalidade e o absurdo de, meras horas depois dum ente querido nos deixar, estarmos a olhar com ar apático para um catálogo de caixões.

Logo nessas primeiras horas pudemos sentir o apreço que muita gente tem por ti. Se é complicado perder um ente querido, também o é, se bem que de forma diferente, tentar consolar quem perdeu um ente querido. Há quem consiga expressar bem essa dor e realmente ter algo útil para dizer, mas em geral, e compreensivelmente, segue-se um dilúvio de chavões, mas que o são por fazerem sentido.

Resumindo, "é assim, a vida".

Não acreditando em vidas eternas e afins, recorro ainda assim a outro chavão: o de que na verdade viverás enquanto te recordarmos, e que de certa forma estarás sempre connosco.

Estarás comigo quando eu ouvir os Pink Floyd.

Poderei celebrar contigo as vitórias do Benfica e desabafar contigo nas derrotas.

Quando for lá a casa e precisar de regar os inúmeros vasos com plantas, serás tu a chamá-los de "cacos", embora seja a minha voz a dizê-lo.

Por vezes vou ouvir também a bola a bater no portão da garagem, num longínquo eco dos teus remates indefensáveis, numa das poucas folgas que te dávamos de defender os nossos.

Sempre que jogar matrecos, estarei a tentar replicar as tuas fintas impossíveis.

Ao passear no centro histórico de Cracóvia, estarei a tentar ver pelos teus olhos todos os detalhes arquitectónicos.

Ao ver um pedaço de madeira, por certo tentarei lembrar-me das explicações que davas com gosto sobre esse material, gosto esse que vinha da arte do teu pai.

E, porque não, lembrar-me-ei de ti sempre que veja um pinázio. Se não fosses tu eu nunca me teria perguntado o nome correcto daquilo, e não teria descoberto esta belíssima palavra.

E, finalmente, estarás comigo sempre que esteja a fazer hidroméis. E se algum deles ganhar alguma medalha, terá sido por teres dito que a primeira foi "a primeira de muitas". E por certo estarás nessa altura a brindar comigo também.

Obrigado por tudo, e até já.


1 observação(ões) de carácter irónico ou mordaz:

Ana disse...

Oh meu filho tudo o que dizes pura verdade. Como posso eu esquecer o Meu Grande Amor. Até um dia